03 agosto 2009

Fale com Ela

Contém spoilers

Fale com Ela, filme escrito e dirigido por Pedro Almodóvar, nos mostra um amor incondicional. Um amor estranho, sim, mas que aprendemos a compreender no decorrer do longa, embora muitas vezes dediquemos a Benigno, o dono de todo esse afeto, sentimentos conflitantes, que vão da compaixão ao repúdio. Mas Fale com Ela é, sobretudo, a respeito das conexões humanas que estabelecemos durante a vida. Para falar disso, utiliza como principais ferramentas os personagens Benigno e Marco.

Como seu nome não por acaso já diz, Benigno é uma pessoa boa, incapaz de fazer mal a alguém. Ele teve uma infância e uma adolescência atípicas, durante as quais apenas cuidou da mãe, perdendo a chance de fazer amizades, de ter qualquer tipo de relacionamento amoroso e de conhecer o mundo. Apesar disso, é verdadeiramente feliz com o modo como as coisas são, e até parece não perceber que a vida dos outros é muito diferente da sua. Contrapondo Benigno, temos Marco, um escritor vivido e experiente. Sua carga emocional é tão grande que às vezes ele não consegue evitar externá-la. Justamente por de fato conhecer o mundo, Marco não consegue ver as coisas com tanto positivismo quanto Benigno e, naturalmente, não enxerga a tarefa de ser feliz como algo fácil.

Os dois se conhecem em um hospital, quando Lydia, famosa toureira e então namorada de Marco, sofre um acidente durante uma apresentação e entra em coma. Benigno trabalha lá cuidando integralmente de Alicia, jovem que também encontra-se em estado vegetativo. Enquanto Marco não consegue sequer tocar Lydia e afirma até mesmo não reconhecê-la, Benigno conversa muito com Alicia, lhe dá banho, faz as suas unhas e corta seus cabelos. No início, vemos isso com admiração, mas, como já foi dito, ela se transforma em vários outros sentimentos, principalmente a partir do flashback, que revela a obsessão dele pela moça como algo antigo. O flashback, aliás, é um recurso muito utilizado em vários momentos do longa, que deixa lacunas na história para posteriormente levar o espectador de volta a fim de lhe fazer enxergar certos aspectos de outra maneira.

É interessante notar também que as conexões entre os personagens são estabelecidas de forma explícita por meio de letreiros, deixando clara a grande importância delas. Nos momentos em que isso acontece, a propósito, é possível fazer interpretações partindo simplesmente da disposição dos personagens na tela. As ligações entre Benigno e Marco e entre Lydia e Marco são feitas frontalmente, já que essas são relações de fato consolidadas, e é importante reparar que o escritor sempre se posiciona à direita, ou seja, mais próximo do ponto de fuga e dando a sensação de domínio (fato que em dado momento é alterado justamente para indicar a mudança de comando). A conexão entre Alicia e Benigno, por sua vez, é estabelecida com uma porta de vidro que os separa do espectador, exatamente para indicar a existência de uma barreira ali, já que esta é uma relação unilateral. No fim, a ligação estabelecida no teatro entre Marco e Alicia é feita lateralmente, com uma fileira de poltronas distanciando-os, mas cujo primeiro assento, exatamente o que fica entre eles, encontra-se vazio, dando a impressão de que, se a distância ainda existe, o caminho está livre para uma aproximação.

O filme ainda demonstra grande sensibilidade na cena em que Benigno narra a Alicia a película à qual assistira na noite anterior. O espectador também vê a história, e, em um momento crucial dela, a montagem faz uma transição entre o rosto da personagem e o de Alicia, revelando, com delicadeza, o que estava prestes a acontecer a esta. Em outra cena, um simples toque esclarece várias coisas a respeito da relação entre Marco e Lydia. O ex-namorado da toureira aparece conversando com ela enquanto segura a sua mão, coisa que, como já mencionei, o escritor não conseguia fazer. Só então percebemos que isso acontece porque Marco, na verdade, inconscientemente já entendera que não havia mais ligação entre eles.

Fale com Ela mostra, com enorme eficiência e construído alicerçado em pequenos detalhes que fazem toda a diferença, que qualquer relação envolve uma complexidade muito grande e requer equilíbrio emocional. Jamais podemos transformá-la no sentido de nossas vidas, correndo o risco de perdê-la e ver ir embora, com ela, qualquer razão que havia para viver. Benigno, interpretado de forma tocante por Javier Cámara, age assim, e sentimos compaixão ao vê-lo triste e negativo, mesmo depois de repudiá-lo por seus atos, principalmente quando ele se dá conta de que nunca teve nada e sempre inventou tudo, e que nem mesmo um abraço ganhou em toda a sua existência. Um amor incondicional como o que ele sentia era o menos indicado para alguém tão desequilibrado, que encarava tudo sem enxergar o que uma personagem sabiamente afirma em dada ocasião: nada é simples. Muito menos os relacionamentos.

Fale com Ela  
Hable con Ella, Pedro Almodóvar, 2002.